31.10.09

NUMA NOITE QUALQUER...

I
quando colhemos a poeira das ruas
e os postes iluminam apenas poças d’água que refletem solidão e dor
e uma criança vende chicletes na madrugada
e um bêbado grunhindo gemidos desconexos
corta o silêncio, invade o poema
falar de flores e da luz da lua
não vale a pena


II
um hippie corta palha e me faz uma esperança
eu não quero, estou dura
um hippie corta palha e me faz uma flor
eu não quero, estou dura
me faz um peixe, um pássaro
várias formas de dobradura
quando ele já está convencido
me presenteia
de peixe, pássaro, flor
de esperança
e eu tiro do bolso um sorriso
quase doce
de criança


III
uma sirene de polícia
de ambulância ou de bombeiro?
uma rajada de tiros
ou de fogos de artifício?
uma confusão
ou um festejo?
um bêbado xingando
ou bradando versos de amor?
é de alegria ou dor
de medo ou esperança
a síntese dos sons da madrugada?

Difícil ser funcionário

João Cabral de Melo Neto

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

26.10.09


Vamos (Madame Kaos) nos apresentar no CEP 20mil, esta quinta, dia 29, no Espaço Cultural Sérgio Porto, a partir das 20h.



19.10.09


Esta terça, dia 27, tem o segundo show de lançamento do CD Amnésia Programada, do Arnaldo Brandão, na Cinemathèque, a partir das 21h. Vou falar um poema lá. A entrada é R$20, e R$15 na lista amiga.

16.10.09

Eu era o pacote completo, e eles fizeram um lindo laço de fita pra enfeitar a caixa (ou poemas de amigos)

Sabe o que eu acho incrível na amizade? É que os amigos conhecem a gente profundamente, e ainda assim, nos amam. Eles conhecem de cor os nossos maiores defeitos, e fazem questão de exaltar as qualidades. Não que nos passem a mão na cabeça, muito pelo contrário. Eles sabem o momento de dizer "não", e quando é importante deixar o "sim" rolar solto... Mas eles amam o pacote completo, cheio de imperfeições. Eles rasgam o papel do presente, não estão nem aí pra decoração, porque eles sabem que o presente está dentro da caixa, e que é cheio de defeitos de fabricação, mas mesmo assim, brincar é tão bom!... Eles não precisam do manual, ou ler as regras do jogo. O que eles não sabem, eles inventam! O que deixa a vida cheia de possibilidades a mais... A amizade é a maior invenção da humanidade! E eu fiz toda essa introdução só pra falar que recentemente dois grandes amigos me fizeram um grande carinho em forma de poesia. O Fernão virou meu amigo de infância logo que nos conhecemos, e olha que a infância dele foi bem antes da minha. O Lucio, meu marido, dizem até que já temos 3 filhos. Veio de Brasília essa semana visitar as crianças... Amigos, amigos, sempre amigos. Apesar da diferença de idade, apesar da distância. Apesar dos defeitos de fabricação e etc. Porque amizade não se faz de "apesares". Se faz de "com isso, com aquilo e tudo o mais". Eu amo esses rapazes, o pacote completo de cada um deles! Agora, chega de blá, blá, blá. Eis os poemas:

BIA
Para
Bia Provasi
Pelo olhar se apresenta
voz suave e tranqüila
divertida e atenta
sempre em paz
sempre faz
acontece
ama
ri
.


recita
a vida
poesia
que faz
a cada dia
um verso
a cada gesto
e o ritmo
no pulso


seu olhar de anjo
o jeito de ocupar o espaço
a dança que faz com o braço
a vida que dá ao poema
abrem portas no universo
para acompanharmos
sua vida a cada verso

Fernão
15/09/09

(AMIGOS: Eu, Fernão, Maysa, Marcela, Maíra, Juju e Célio)

Atemporal
para a grande amiga, Beatriz Provasi.

Essa amiga Bia
É pra lá de porreta
É livre no pensar
E diz o que vem na veneta

Artista de verso e de palco
Corajosa, e decerto valente,
Amiga do peito e, também,
Pessoa muito coerente

Esporadicamente amigo,
aqui logo reconheço
que, apesar da distância,
nunca faltou o apreço

Saudade que vai,
O tempo esvai;
Saudade que vem,
Amizade aqui tem.

Amiga que veio
que é e será
mais que adjetiva,
Sujeita atemporal

Lucio Mello

(AMIGOS: Lucio, Tamara, Natália, eu e Jacomo)

10.10.09

NU ARTÍSTICO

a nudez mais funda é a da alma
tento esconder as gordurinhas dos meus pensamentos
mas elas pulam pra fora, formam pneuzinhos
meus poemas são repletos de pneuzinhos
são o corpo imperfeito de um espírito inquieto
não uso maquiagem e vivo descabelada
meus versos têm um dentinho torto que aparelho nenhum dá jeito
cansei de sorrir com a mão na frente pra esconder o defeito
hoje sou só gargalhada!...
desfilo versos desengonçados pelas passarelas
me deixo fotografar com as expressões mais ridículas
o amor é ridículo – por que meus versos têm de ser bonitos?
eu defendo a feiúra da obra de arte
a estética da feiúra, da imperfeição,
do exagero, do excesso de informação
a estética dos engarrafamentos, da fumaça, das buzinas
do muro pichado, do lixo revirado
de tudo o que é caótico, urbano
de tudo o que é humano
a nudez mais funda é a alma exposta, ferida aberta,
coração dilacerado atirado no asfalto
que ainda pulsa, pulsa, pulsa...
antes de ser esmagado pela roda do carro
o motorista apressado nem vê
(está sempre atrasado pra viver)
eu desacelero, recolho, emolduro, exponho:
é o meu poema
que ainda pulsa, pulsa, pulsa...
eu estou nua dentro de um carrinho de compras no meio da rua
mas são poucos que têm olhos pra ver.